Chegamos assim à segunda-feira de Carnaval, o dia apresentava-se frio e tristonho desde a janela do segundo piso, onde por volta das sete horas locais tentava abrir as pestanas. Lá em baixo, já meio mundo tomava a refeição mais importante do dia para uma caminheiro. Terminada esta e já fora de portas, a ansiedade era grande. Estavamos a pouco mais de cinquenta quilómetros de iniciar a famosa Ruta del Cares. Um trajecto pedestre sinuoso e cheio de precipicios que segue o rio Cares ao longo de um percurso de aproximadamente doze quilómetros. Isto oficialmente, pois os gps presentes marcaram todos aproximadamente dezoito. Pequenos pormenores para quem ama a natureza como se parte dele fizesse.
Chegados ao ponto de partida por uma estrada estreita entre o rio, lá em baixo, e as montanhas, lá em cima, eis que todos sem excepção, saltam, como se de molas se tratassem, das carrinhas para fora e começam a preparar os provisões de combate. A temperatura não pode ser mais perfeita. Nota-se uma agradável brisa no ar, mas o sol ao longe cujos raios reflectem na neve com esplendor anima todos, mesmo os mais negativos. Embora, claro está... naquele momento não havia uma mente negativa nem ali, nem possivelmente nos arredores.
Ao fundo, junto ao inicio do trilho, uma placa dá-nos a conhecer o que nos espera. Um caminho estreito e por vezes escorregadio. Muitos túneis e locais impróprios para quem possa sofrer de vertigens. Acho que mesmo aqueles que não sofrem, iriam passar a sofrer. E para animar a malta, o gráfico não enganava, os primeiros três mil e quinhentos metros seriam sempre a subir. Antes de iniciar, ainda um outro aviso – o trilho teve um percalço a uns oito quilómetros dali – uma descida precipitada até ao fundo da ravina. Mas os alertas são claros, continua transitável. A protecção civil espanhola está lá a remendar o local.
Assim, conforme anunciado, os primeiros três mil e quinhentos metros são passados sempre a subir. Logo após o pequeno-almoço, não era o que mais queria, mas a sensação transmitida pelo silêncio daquela imensidão de rocha era mais forte que qualquer outra naquele momento. E assim, fomos subindo por um trilho sinuoso de pouca terra e muita pedra solta. Atrás tinhamos cada vez mais um fosso, um fosso fundo e a cada metro mais distante. Ao nosso lado, bem lá no fundo, tinhamos um rio de águas azuís quase transparentes, com uma água tipicamente caraibenha, mas exponencialmente mas fresca que a de qualquer praia portuguesa. Estas deslizavam suavemente por entre rochas e rochedos, dando uma vitalidade incrivel ao momento. Do outro lado tinhamos montanhas, altas cheias de dureza, desde o verde verdejante junto das nossas sobrancelhas até ao puro rochedo que as acompanhava até ao topo branco extremanente brilhante. Um tom que apenas neve pura e impenetrável nos pode dar. O céu esse era de uma azul normal, mas tão normal que nem parecia normal, onde o sol expreitava e fazia as delicias de pequenos e graudos sempre que uma nuvem se desviava um pouco.
Ali só haviam fatos pintados de cores que caminhavam em fila quase indiana, bem junto das paredes, pois do outro lado a altitude era demasiado arrebatadora para ser ignorada. Junto a mim, cá mais atrás, apenas dois sons se distinguiam. Um clap, clap das imensas fotos que o grupo dos vassouras aproveitou para brindar a paisagem e um meu zumbido de estimação que não me dá treguas o tempo todo. É tão mau nunca conseguir estar em silêncio absoluto que às vezes apetece-me...
O percurso foi deslizando por baixo dos nossos pés como se uma coisa banal se trata-se. Naqueles quilómetros apenas os nossos olhos e sentimentos terão trabalhado de forma fugaz, como que se quizessemos mas não conseguissemos lugar para guardar e registar toda aquela paisagem diabólica.
Quase uma hora depois do restante grupo, nós os vassouras chegamos ao ponto de encontro do meio do trilho. Foi na povoação montanhosa de Caín que nos voltamos a encontrar. Os seis guerreiros lá de trás, tinham finalmente chegado. Os restantes companheiros de aventuras já tinham almoçado, estando a aproveitar o magnifico sol que a esplanada do bar gratuitamente nos proporcionava. Mas nós, os lentos não em pedalada, mas simplesmente em sentimentos e memória fotográfica estavamos com toda a certeza muito mais ricos em sentimentos de amizade e companheirismo.
Depois de almoço, foi um ver ao contrário, ou seja, o trajecto seguinte foi todo o percurso da manhã, mas em sentido contrário. Um misto de emoções ocorriam a cada momento que normalmente terminavam com um... “Nós passamos por ali?”, “Eh cum caraças, tinhas visto aquilo?”, “esta claridade para fotos é melhor que há bocado”. E lá seguimos nós, por todo o troço tirando fotos a cada pedaço. Ora ficava um para trás ora ficava outro. Eramos um grupo de seis sempre muito animado e onde cada vez mais se respirava amizade. O talvez cereja no topo do bolo, tenha aparecido já na parte final, numa descida de aproximadamente três quilómetros e meio, um inverso da partida. Aí, fomos confrontados com cabras espalhadas pelo trilho. Uma mesmo de frente, outras acima e abaixo. Todo o grupo foi obrigado, ainda que por vontade própria a suspender sua marcha. As cabras estavam demasiado domesticadas para se ignorarem. Somente não se puseram em posição de alinhamento com o Rui, pois teria dado uma foto muito interessante.
Passadas as cabras, já com algumas saudades, os últimos metro serviram para tirar uma fantástica foto a quem tentava em vão alcançar as casas impossíveis do outro lado. Ela bem tentava, mas o cumprimento de sua objectiva eram demasiado japonesa para além alcançar. Assim, serviu-lhe de consolação as fotos que lhe tiravam à traição. Depois, bem despois foi o chegar ao final do trajecto onde as restantes caras, aparentando um bater de palmas, esperavam ansiosamente pelo nosso regresso.
Tirada a foto de grupo, eis que o grupo partiu como um todo em busca de um merecido banho. Pelo menos esperava-mos que ao contrário do final anterior, houvesse água quente para todos. Mas como bons pensadores que alguns somos, houve um grupo que decidiu antes enverdar por uma compras finais, enquanto os restantes lutavam por gota a gota por um pedaço de água quente.
Comprei duas boas garrafas. Um traz licor de mel, mas daquele que se bebe à confiança e se tosse como uma criança, como uma caminhante hora depois da hora de deitar. Trouxer também uma garrafa muito engraçada com uma pega deitada, lá dentro uma muito interessante aguardente de orujo, para aqueles dias frios em que o organismo pede uma acendalha. E no outro saco vinha um dos famosos queijos de Cabrales. Um queijo forte e bem medido. Com aspecto podre, mas bem saboroso. Um daqueles queijos que bem podemos deixar esquecido no fundo do frigorifico, pois ganhe ou não bolor, para nós estará sempre com o aspecto actual.
Depois o jantar, desta vez num restaurante com mais alguns créditos, onde as entradas de queijos variados quase deu para cheirar um Alentejo mais descaracterizado. O Costelon também não estava mal, mas nem todos comeram por igual. Uns vinham muito passados, como sola de borracha. Outros mal passados, parecendo um bicho acabado de matar. Felizmente, alguns tiveram a sorte do seu lado... Depois, como se todos nós fossemos invadidos por um sentimento de nostalgia, ninguém queria ir deitar. Uns foram emborcar mais umas litradas de sidra, outros como eu preferiram andar pelo vazio. A nostalgia impragnava o ar. No dia seguinte seria a partida e aquele fantástico grupo parecia decidido em não voltar.